Até março de 2020, então no auge dos 89 anos, a professora aposentada
Aurélia Godoy levava uma vida ativa do jeito que sempre gostou de
aproveitar.
“Vaidosa, unhas feitas, lúcida, altamente bem-humorada e simpática. Era
uma pessoa que dependia de acompanhante [por dificuldade de locomoção e
deficiência visual], mas decidia tudo. Ela mesma se penteava, passava
batom, escolhia os brincos e a cor do esmalte, fazia a própria higiene”,
conta a filha dela, a jornalista Laís Godoy, 60.
Entre as atividades cotidianas, assistir a duas missas por semana, tomar
café no shopping e encontrar a família nos feriados, sábados e
domingos, além da clínica de fisioterapia de segunda a sexta-feira.
Toda essa vida ficou para trás quando veio o coronavírus. Jantares, almoços, cafés, missas, passeios no shopping, fisioterapia, até as visitas da manicure… Tudo foi suspenso por tempo indeterminado enquanto o mundo se fechava na periculosidade de um futuro incerto - e que se revelaria ainda mais instável para os idosos, um dos primeiros grupos identificados como aqueles mais propensos a desenvolver a forma grave e fatal da Covid-19.
Hoje nonagenária e vacinada com as duas doses, Aurélia não contraiu a
doença, mas teve a saúde mental bastante comprometida pela quarentena.
Foram algumas semanas isolada, na companhia apenas das cuidadoras, e,
para diminuir a solidão, voltaram os almoços em casa, somente com a
filha, o genro e a neta, nos fins de semana.
Mas, em julho, quatro meses após a chegada da pandemia, Laís começou a
notar mudanças de comportamento. “Ela estava tendo delírios, e sempre
ruins: que a neta tinha sido sequestrada ou que ela mesma ia ser presa. E
a gente não sabia direito como agir”, diz.
“Vítima indireta da pandemia”
Ao procurar ajuda com uma psiquiatra, a família de Aurélia foi
aconselhada a administrar a situação enquanto durasse a pandemia - que,
na época, se imaginava que não fosse se prolongar tanto - e,
inicialmente, não foi prescrita uma medicação.
Para contornar o peso do isolamento, Laís passou a levá-la de carro,
quando tinha tempo livre, passando por lugares como a Cidade Alta de
Olinda e a orla de Boa Viagem, sem descer do veículo. Mas, mesmo com as
saídas e visitas mais frequentes, os delírios persistiram, combinados
com as oscilações de humor. E os passeios viraram um fator de estresse.
“Eu a tirava de casa para ver se saciava um pouco essa vontade de ir
para o mundo, só que ela começou a dar alguns problemas a ponto de se
desestabilizar na rua”, recorda Laís, que, diante das confusões mentais,
foi orientada a não contradizer a mãe.
“Nós procuramos ajuda especializada, porque a família tem alguns casos
de Alzheimer, mas, depois de um batalhão de exames, o diagnóstico foi
delírio senil, e ela precisava ser medicada porque os delírios estavam
cada vez piores”, relata. Além do problema psíquico e emocional, no fim
do ano, veio a perda da visão por um glaucoma tardio e a artrose
avançada, prejudicada pelo período fora da fisioterapia, se agravou.
Desde janeiro, as sessões na clínica foram retomadas três vezes por
semana, e a medicação começou a surtir efeito. “Ir à clínica era
terapêutico, porque lá tinha amigos, era um passeio, ela levava bolo e
dava presente para todo mundo. Mas agora, quando a clínica reabriu, ela
já não conseguia mais. E aí a gente tirou e agora tem uma fisioterapeuta
em casa, dois dias na semana”, conta Laís.
Hoje Aurélia tem uma mobilidade um pouco melhor e o emocional está mais
equilibrado, sem aqueles delírios, embora ainda tenha um grau de
demência senil, que é comum na idade, mas se agudizou na quarentena.
“Minha mãe foi uma vítima indireta da pandemia. Ficou deprimida, chorou,
coisa que ela nunca fazia porque vivia gargalhando por tudo. Eu tento
devolver a vida a ela, mas tudo aconteceu de forma abrupta”, diz.
Entre os alvos principais do coronavírus
Em meio ao quadro de incerteza extrema que dominou o mundo logo no
início da pandemia, ainda antes de ela chegar ao Brasil, já chamava
atenção a alta incidência de mortes e casos graves entre os idosos em
comparação com o público de outras idades.
No País, durante todo o ano de 2020, as faixas etárias acima dos 60 anos
correspondiam, em média, a quase 80% das mortes registradas. Esse
cenário vem mudando gradativamente desde janeiro, com a vacinação.
Um dos primeiros públicos-alvo da campanha, os idosos apresentam, em
Pernambuco, segundo a Secretaria Estadual de Saúde (SES-PE), uma taxa de
cobertura vacinal de 98,2%, apenas na primeira dose, e de 59,5%, na
segunda.
O avanço na imunização desse grupo em todo o País já traz resultados,
com a redução nos números de casos, mortes e internamentos, porém, como a
taxa de proteção da população em geral ainda está muito longe da meta
mínima de 70%, os riscos de contágio permanecem e os cuidados - uso de
máscara, higiene das mãos e distanciamento social - precisam ser
mantidos.

Não é uma equação fácil. Por um lado, o isolamento é necessário à
prevenção da Covid-19; por outro, alimenta o estresse e a ansiedade,
podendo gerar ou agravar novos problemas de saúde. Se lidar com a
pandemia já é difícil para quem tem o corpo jovem e saudável, para quem
está na maturidade, a insegurança é ainda maior.
Um estudo realizado com mais de 9 mil idosos, no ano passado, pela
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em parceria com as universidades
Federal de Minas Gerais (UFMG) e Estadual de Campinas (Unicamp), mostrou
que 58% deles tinham alguma doença crônica não transmissível (DCNT) de
risco para a Covid-19, como hipertensão e diabetes, e 47,1% relataram o
sentimento de solidão, o que pode trazer um efeito negativo sobre a
saúde em geral dessas pessoas.
De acordo com outro estudo, da Universidade de Chicago, nos Estados
Unidos, a sensação de solitude extrema é capaz de aumentar em 14% as
chances de um idoso morrer de forma mais prematura.
“A Covid e as consequências da pandemia afetaram os quatro pilares do
envelhecimento ativo: saúde, segurança, participação social e
aprendizado continuado”, explica o presidente da Sociedade Brasileira de
Geriatria e Gerontologia Secção Pernambuco (SBGG-PE), Sérgio Falcão
Durão, citando um conceito definido pela Organização Mundial de Saúde
(OMS).
“Os idosos passaram a ficar isolados, muitas vezes sem o suporte social
que tinham ou, nesse tempo inteiro, sem uma consulta médica, até por
falta de acesso à telemedicina. Os que tinham necessidade de
reabilitação interromperam terapias, e exames de rotina foram adiados,
acarretando diagnósticos tardios, fora os impactos na saúde mental”,
descreve o geriatra.
A vida não para na terceira idade
Outro fator fundamental para a qualidade de vida da pessoa idosa, e que
foi reduzido na pandemia, é a participação social, ou seja, sentir-se
parte importante da vida cotidiana de familiares, de amigos e da
sociedade no geral.
E nisso é importante que se tenha acesso à tecnologia, o que está
relacionado ao quarto pilar citado pelo médico Sérgio Durão: o
aprendizado continuado. “Quem não tinha habilidade com a internet e
trabalhava presencialmente teve uma rotina abrupta na rotina e na
dinâmica cognitiva, isso em várias profissões”, diz o especialista.
Por isso, o presidente da SBGG-PE defende que os idosos vacinados,
principalmente aqueles que tomaram as duas doses, podem retomar algumas
atividades suspensas desde o início da pandemia, mas sempre seguindo os
protocolos de prevenção à Covid-19.
“Voltar à prática de atividade física já é seguro em espaços ao livre,
usando máscara e tomando cuidado com a higiene. Quando você adota um
comportamento saudável, tende a se alimentar e dormir melhor, e isso
começa a mexer em princípios da saúde que vão influenciar a imunidade. A
volta do movimento é muito importante ”, afirma.
Doutorando em Psicologia Clínica na Universidade Católica de Pernambuco
(Unicap), com pesquisas voltadas para o público idoso, o psicólogo
Gabriel Medeiros, que é membro do Conselho Regional de Psicologia
(CRP-PE), observa que a própria classificação como grupo de risco e a
visão social sobre a velhice como “algo que perdeu a utilidade” podem
agravar quadros de ansiedade e ativar situações estressoras.
“Essas crenças são reforçadas a partir do momento em que esse idoso
precisa ficar distante dos filhos e netos. Dois anos na vida de uma
criança mudam muita coisa, e o idoso não estar por perto acompanhando
pode causar muito sofrimento. E, além disso, as perdas de amigos da
mesma faixa etária e, até, mais jovens”, analisa. “E o cérebro do idoso
de hoje não está preparado para essa carga de notícias e velocidade de
informações porque ele não se desenvolveu nesta geração hiperconectada”.
Para reduzir esses impactos e proporcionar uma rotina saudável na
pandemia, é necessário que o idoso seja estimulado a manter uma vida
mais ativa - e, mais uma vez, a tecnologia pode ajudar, como é o caso de
Aurélia, que, com a ajuda de quem está por perto, consegue usar o
celular para falar com a segunda filha, que mora na Itália há quase 30
anos e não vem ao Brasil desde o começo da pandemia.
“O fato de ter acesso a um smartphone pode trazer ganhos fantásticos. É
uma oportunidade tanto de se sentir mais perto das outras pessoas como
também de adquirir essas habilidades no uso das ferramentas”, comenta o
psicólogo Gabriel Medeiros. “Talvez só falte um pouquinho de paciência
por parte dos parentes mais jovens de dar aquela instrução e ajudar o
idoso a ir acertando até por si mesmo. Há essa crença de que o idoso é
lento, mas isso, cientificamente, caiu por terra. O idoso é extremamente
capaz de aprender novas habilidades”.
Por uma vida com mais segurança
Um dos pilares do envelhecimento ativo, a segurança dos idosos também
foi prejudicada durante a pandemia. Dados divulgados pelo Centro
Integrado de Atenção e Prevenção à Violência contra a Pessoa Idosa
(CIAPPI), ligado à Secretaria Estadual de Justiça e Direitos Humanos,
revelam que, desde janeiro, já foram identificados 1.443 atos de
violência contra esse público a partir de 559 denúncias. Em menos de
seis meses, os números já são quase 70% do total de registros feitos em
todo o ano de 2020.
Segundo o secretário de Justiça e Direitos Humanos, Pedro Eurico, as violações mais comuns são a negligência e os crimes financeiros.
“Mais de 90% dos casos acontecem dentro do próprio núcleo familiar. Nós
temos também a violência psicológica, que são as ameaças e os
constrangimentos, e o abandono, quando se deixa o idoso trancafiado num
quarto sem nenhuma assistência”, detalha. “Na violação financeira, os
parentes tomam o cartão do idoso e saquem o dinheiro da pensão ou da
aposentadoria ou fazem empréstimos com taxas de juros elevadas”.
Ainda de acordo com o gestor, esses atos ocorrem em todas as faixas de
renda. “Em todos estratos sociais, acontecem, inclusive, com violência
física”, conta Pedro Eurico.
Quando um caso de violação é identificado, a vítima é atendida pelo
CIAPPI e pode ser encaminhada à casa de algum parente ou, se não isso
for possível, a algum centro de acolhimento. O órgão tem um canal de
denúncias pelo telefone (81) 3182-7649, das 9h às 16h, ou pelo e-mail ciappi2016@gmail.com.
Fonte; Folha-PE
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